Ana Paula Azevedo

Os rituais habitam nossa vida como mapas que organizam o tempo e o espaço. Presentes tanto nos gestos mais cotidianos quanto nos grandes acontecimentos, são eles que dão significado ao que vivemos e criamos – nas mais diferentes dimensões da experiência humana.

Por exemplo, no ato da criação literária. No poema Ritual, José Saramago revela como o  ato de escrever se transforma em uma experiência sagrada:

“Se é altar o poema, sacrifício.

Nesta pedra de lua que é o verso

O cutelo do vivo ganha fio.”

O poeta, ajoelhado perante o papel, entrega o sonho ao sacrifício da palavra. O ritual não é apenas ação; é também criação, um movimento de transformação que dá forma ao intangível.

Mas o ritual também encontra força na denúncia de uma vida limitada pelas condições sociais e pelas rotinas impostas pelo mundo fabril. Chico Buarque, em “Cotidiano”, revela como os gestos repetidos se reconstroem nos vínculos afetivos:

“Todo dia ela faz tudo sempre igual

Me sacode às seis horas da manhã

Me sorri um sorriso pontual

E me beija com a boca de hortelã.

Todo dia eu só penso em poder parar

Meio dia só penso em dizer não

Depois penso na vida pra levar

E me calo com a boca de feijão”.

Embora pareçam banais, as rotinas criam um chão firme em meio à instabilidade da vida moderna, e também podem simbolizar espaços de resistência em um mundo que soa complexo e a felicidade do ser se confunde com a ilusão do ter. É o que acontece na música “Só Fé!”, do rapper Grelo:

“Hoje eu levantei da cama, tomei meu café

Dei um beijo nas criança, eu coisei com a muié

Tudo isso foi de graça, irmão

As coisas boas são de graça, irmão.”

No contexto educativo, os rituais assumem um papel ainda mais significativo, e este é um dos temas da obra “Reivindicando uma abordagem com DNA brasileiro: uma utopia em construção”, da pesquisadora Bruna Ribeiro. Lançado pela Editora Diálogos Embalados, o livro mostra como os rituais criam, na educação, espaços de pertencimento e conexão, proporcionando momentos de acolhimento e transformação.

Integrados às práticas pedagógicas, os rituais ajudam a construir uma educação mais inclusiva e enraizada nas vivências culturais locais. Não são apenas eventos isolados, mas processos contínuos que reforçam os laços entre professores, crianças e comunidades, ressignificando a experiência educativa como um todo. Segundo Bruna Ribeiro, tais práticas possibilitam que a escola se torne um lugar de memória, resistência e criação coletiva, onde o aprendizado se conecta profundamente com as identidades culturais e sociais de cada indivíduo.

Os rituais de fim e início de ano são especialmente marcantes. Eles simbolizam ciclos, encerramentos e recomeços. Seja em uma festa com a família, um banho de ervas na praia, ou o simples ato de escrever resoluções, esses gestos estão impregnados de esperança e renovação. Para muitos, vestir branco na virada do ano é mais do que uma tradição: é um desejo de paz. Pular ondas, acender velas, agradecer pelo que passou e pedir bênçãos para o que virá são formas de se conectar com algo maior, com a força da vida que nos impulsiona.

Rituais sagrados também se manifestam nas mais diversas tradições religiosas e espirituais. No Brasil, país de fé plural e sincrética, a conexão com o divino pode se expressar em um culto evangélico, em uma missa católica, em uma oferenda a Iemanjá, ou no canto de um pajé. Essa diversidade é um reflexo da riqueza cultural e da esperança que caracteriza o povo brasileiro. Mais do que dogmas, esses rituais são celebrações da vida e da espiritualidade, que transcendem as crenças individuais para afirmar algo comum: a fé na possibilidade de transformação e na capacidade de cada um de construir o próprio caminho.

Os rituais, grandes ou pequenos, têm o poder de transformar nossas vidas. Eles nos ensinam a desacelerar, a enxergar a beleza no percurso e não apenas no destino. Perdê-los é um risco civilizatório.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro “O Desaparecimento dos Rituais” (Editora Vozes), traz uma crítica contundente à sociedade contemporânea, que caracteriza como uma “sociedade de desempenho”. Han observa que, em tempos marcados pela busca incessante por produtividade e sucesso individual, os rituais têm desaparecido, sendo vistos como obsoletos ou desnecessários. Segundo Han, essa perda não é meramente cultural, mas estrutural: ao eliminar os rituais, perdemos também as conexões simbólicas que dão profundidade à vida.

Han descreve os rituais como práticas que criam “ressonâncias” — verticais, conectando-nos ao transcendente; horizontais, fortalecendo os laços comunitários; e diagonais, ligando-nos ao mundo material. Para ele, essa tríade é fundamental para uma vida com significado. Sem essas ressonâncias, diz Han, caímos em um estado de isolamento e dispersão, onde a depressão se torna um sintoma do vazio gerado pela falta de vínculos simbólicos (Han, 2021).

Na Diálogos, acreditamos no poder dos rituais como pontes que conectam o presente ao futuro, o individual ao coletivo. Seja na leitura de um livro em sala de aula, na troca de ideias em um encontro ou na reflexão de um poema, os rituais são o alicerce de nossas práticas.

Seja no gesto mais simples ou na criação mais complexa, que possamos encontrar beleza e propósito no caminho. E você? Quais rituais te ajudam a dar sentido ao cotidiano? 

Referências Utilizadas

  • Saramago, José. Poema “Ritual”, publicado em Os Poemas Possíveis. Fundação José Saramago.
  • Chico Buarque. Música “Cotidiano”, do álbum Construção (1971).
  • Grelo. Música “Tudo Isso Foi de Graça, Irmão. Só Fé!”, disponível em plataformas digitais.
  • Ribeiro, Bruna. Livro “Reivindicando uma abordagem com DNA brasileiro: uma utopia em construção”.
  • Han, Byung-Chul. Livro “O Desaparecimento dos Rituais”, Editora Vozes, 2021.

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