Ainda é muito comum, na Educação Infantil, associarmos planejamento à elaboração de atividades: sequências prontas, listas de materiais, datas comemorativas e propostas que, muitas vezes, pouco dialogam com a vida real do grupo. Essa lógica tão disseminada quanto empobrecida reduz o papel do professor ao de executor de tarefas previamente decididas e coloca a criança no lugar de quem apenas “realiza” aquilo que um adulto planejou a partir de um olhar adultocêntrico.
Como lembram Paulo Fochi e outros pesquisadores das abordagens participativas, essa é uma compreensão estreita e inadequada do que significa planejar na Educação Infantil.
O que significa planejar quando levamos a infância a sério?
Para Fochi, planejar não é montar uma sequência de aulas, selecionar atividades prontas ou controlar todos os acontecimentos do dia. Essa lógica ainda está presente em muitas escolas e parte da ideia de que a aprendizagem é previsível, linear e totalmente planejável.
Mas, ao reconhecermos a criança como sujeito potente, produtor de cultura, curioso e com agência como afirmam as DCNEI e a BNCC torna-se insustentável seguir planejando apenas atividades desconectadas das curiosidades e investigações reais de cada grupo. E também não se trata de planejar apenas os momentos conduzidos pelo professor.
Planejar, nas abordagens participativas, significa construir condições.
É criar um ambiente, uma organização do tempo, uma postura docente e uma oferta de materiais que convoquem as crianças a viver experiências de aprendizagem no cotidiano inteiro.
Como afirma Fochi, apoiando-se em Fortunati, “as condições ofertadas traduzem as intenções do professor e permitem que as crianças atuem como protagonistas”. Assim, aquilo que antes chamávamos de “conteúdo” da atividade se transforma em possibilidade de aprendizagem.
Essa visão pede uma abertura maior: compreender que o conhecimento se estrutura de forma complexa, conectando conteúdos, linguagens e campos de investigação. Eleger conteúdos sem escutar como as crianças se relacionam com eles é negar tanto a complexidade do conhecimento quanto a autoria infantil e sustenta apenas a ilusão de controle docente.
Planejar, portanto, deixa de ser desenhar ações sem conexão e passa a ser projetar encontros: entre crianças, adultos, linguagens, materiais, ideias, culturas e mundos.
Planejamento de contexto: o que sustenta a vida cotidiana
No livro Crianças e adultos partilhando jornadas de aprendizagem, a autora apresenta o planejamento de contexto, uma modalidade tão potente quanto pouco discutida. Ele se propõe a criar uma ambiente de bem-estar para crianças e também para os adultos, além de criar um ritmo para o cotidiano.
Planejar o contexto significa pensar:
- a organização do espaço;
- a circulação e o tempo;
- os materiais e sua qualidade cultural;
- a criação de microclimas nos espaços e a permanência deles
- as microtransições e os modos de acolher ou tensionar;
- o ritmo da jornada, que não deve ser uma corrida;
- as situações de cuidado pessoal
- as dimensões relacionais que sustentam a convivência.
Esse planejamento não nasce de um modelo fixo, mas de uma postura reflexiva, baseada em observação e documentação. É assim que o professor compreende as necessidades do grupo e cria condições para que a jornada seja um espaço de bem-estar, experimentação e sentido.
Planejar o contexto não é elaborar uma rotina rígida.
É dar intencionalidade a todas as situações vividas, reconhecendo que cada uma delas é uma oportunidade de aprendizagem — desde que garanta participação e escuta das crianças.
É olhar para a escola como um organismo vivo, que precisa ser organizado para acolher múltiplas experiências, e não apenas para “funcionar”.
Planejamento de sessão: quando a intenção encontra a investigação
Outra modalidade discutida por Fochi é o planejamento de sessão. Aqui, o professor não propõe atividades para preencher o tempo, mas cria situações significativas que garantem:
- os saberes e interesses das crianças – que emergiram a partir de outras situações vividas no cotidiano e registradas pelos adultos, aqui ganham espaço para aprofundamento;
- os conhecimentos acumulados pela humanidade – encontro entre hipóteses, perguntas e pensamentos das crianças e o conhecimento instituído (cuidado para o instituído não ocupar o lugar dos pensamentos da infância);
- os processos de investigação em pequenos grupos – condição adequada para que as crianças possam construir saberes comuns a partir da singularidade de cada um.
- encontro entre as intenções das crianças e dos professores – busca por complementariedade de intenções.
As sessões podem ser exploratórias, catalisadoras, de aprofundamento, ampliação, conversação ou sistematização.
E uma coisa é fundamental: o planejamento de sessão só faz sentido porque existe o planejamento de contexto. Juntos, eles criam uma pedagogia coerente, que articula o cotidiano aos momentos de maior aprofundamento.
O que está em jogo quando mudamos nossa ideia de planejamento
É necessário deslocar o foco:
não planejamos para fazer as crianças fazerem coisas, mas para que elas possam construir relações, sentidos, teorias e culturas.
Planejar deixa de ser antecipar o que a criança deve fazer e passa a ser preparar o terreno para que ela possa viver sua experiência de aprender.
Essa mudança exige estudo, documentação, interpretação e reflexão coletiva. Exige que o professor assuma sua autoria e sua responsabilidade sobre o cotidiano — não para controlá-lo, mas para ampliar o mundo expressivo das crianças.
Escolher planejar condições e oportunidades é escolher uma outra escola
Uma escola que planeja atividades é uma escola que já sabe, de antemão, o que deve acontecer — e o que deve ser aprendido.
Uma escola que planeja condições e oportunidades é uma escola que acredita:
- na potência das crianças;
- na imprevisibilidade da aprendizagem;
- na complexidade do conhecimento;
- na beleza dos encontros;
- na responsabilidade ética do adulto.
Planejar condições é uma forma de respeito e garantia dos direitos das crianças, como afirmam as DCNEI (2009).
É apostar que a vida cotidiana é um terreno fértil — e que, quando bem cuidada, ela se torna currículo.
Avaliação como investigação das condições e das aprendizagens
Júlia Oliveira Formosinho nos convida a um deslocamento profundo: compreender que a avaliação, na Educação Infantil, deve deixar de ser um instrumento de medição final e tornar-se uma pesquisa sobre as oportunidades criadas no ambiente educativo.
Isso inclui não apenas “o que a criança fez”, mas em que condições fez: com quais materiais, em que tempo, com quais relações.
Algumas ideias centrais:
- A avaliação não se separa da documentação pedagógica. Registrar processos é parte constitutiva de avaliar.
- A avaliação abre possibilidades de ação. Refletimos sobre o que foi oferecido para transformar o contexto.
- Avaliar a criança isoladamente distorce o olhar. Formosinho propõe responsabilidade compartilhada entre criança, adulto e instituição.
- A avaliação considera a voz das crianças, suas narrativas, seus modos de expressão.
Assim, planejamento, documentação e avaliação formam um ciclo indissociável — um movimento que sustenta práticas participativas, democráticas e éticas.
Integração com as ideias de planejamento
Se planejamos condições e não apenas atividades, faz sentido que avaliemos também as condições.
Não basta perguntar “o que a criança fez?” — precisamos perguntar:
- que ambiente criamos para que ela pudesse fazer?
- que relações e mediações disponibilizamos?
- que materiais e tempos oferecemos?
Nesse sentido:
- O planejamento de contexto se torna parte da avaliação.
- O planejamento de sessão precisa ser documentado e reavaliado.
- A avaliação torna-se reflexiva, processual e formativa.
Planejar, documentar e avaliar, portanto, formam uma pedagogia da participação e da investigação — onde crianças e adultos constroem juntos, vivem juntos e aprendem juntos
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI. Brasília: MEC/SEB, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular – Educação Infantil. Brasília: MEC, 2017
HEMING, Leisiane. Crianças e adultos partilhando jornadas de aprendizagem. São Paulo: Diálogos Embalados, 1. ed., nov. 2024
FOCHI, Paulo Sergio. A construção da qualidade no cotidiano pedagógico das creches e da pré-escola: um estudo de caso do Observatório da Cultura Infantil – OBECI. Zero-a-Seis, Florianópolis, v. 25, n. 48, p. 1–31, 2025. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/zeroseis/article/view/94493.
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia. A avaliação holística: A proposta da pedagogia-em-participação. Revista Interacções, 10(32). https://doi.org/10.25755/int.6346