Entre tantas luzes que o pensador polonês Zygmunt Bauman acendeu para nos ajudar a entender os paradoxos contemporâneos, está a ideia de que estar no mundo hoje significa uma escolha ética entre sermos turistas ou peregrinos.
Turistas, todos sabem o que são: vieram a passeio, não estão atrás de viagem interior, mas de fruição. Vão a muitos lugares e não pertencem a nenhum. Estão mais perto de um bom vinho do que de uma experiência nem sempre confortável do pôr do sol no alto da montanha ou da trilha meio virgem e pedregosa. Tudo está programado para que se aproveite bem o tempo entre o café da manhã e o jantar. Os olhos miram o lado de fora, muitas vezes para não pensar nas dores de dentro.
Peregrinos, diz Baumann, buscam algo. O caminho é a viagem, não o destino. A bússola que o guia está na palma do coração. Não procura entretenimento, rápidos prazeres sensoriais, mas experiências de revelação. Cada passo acontece na expectativa de sentido.
Quem lê deve estar pensando: que raios têm isso a ver com a reforma do Ensino Médio? Boa pergunta. Explico. Tudo começou quando fui lá escarafunchar meus velhos dicionários (tenho uma coleção poeirenta deles) atrás da etimologia da palavra itinerário, que significa: relato de viagem. Agora começamos a chegar mais perto, não é?
Quer aprovemos ou não o Novo Ensino Médio, seja pela concepção, seja pela forma como virou lei, não se pode negar que respondia a um problema real: nosso Ensino Médio fracassou. Tornou-se a parte mais estreita do cruel funil de exclusão que é a escola brasileira. Há estatísticas de sobra para mostrar isso. A cada 100 alunos que entram na escola, apenas 69 concluem o Ensino Médio. Entre os que estão na sala de aula, mais de um quarto dos alunos acumulam defasagens de 2 ou mais anos em relação à série em que deveriam estar.
A escola se tornou um lugar para turistas de excursão, levados na marra para ver as mesmas paisagens, comer a mesma comida, rezar na mesma igreja, ouvir o mesmo guia. Jovens turistas que não se sentem pertencentes, não encontram nada além de objetivos utilitários, como chegar ao Santo Graal do diploma, carimbo no passaporte para seguir em frente, sem olhar para trás.
Os itinerários surgiram com o objetivo de mudar essa rota. Representam, ou deveriam representar, a possibilidade de escolhas, promovendo um match entre escola e a realidade dos alunos, convidando-os a trilhar suas próprias jornadas, a perceber o tempo vital dedicado à aprendizagem como algo valioso, a sentir a escola como algo que lhes pertence.
Com menos conteúdos tradicionais obrigatórios para todos, mais tempo para a diversidade curricular, novos formatos, oportunidades de autoria e de protagonismo juvenil, tais escolhas teriam o efeito de desenhar uma escola de fato feita para os jovens, mais sensível ao contexto que vivem.
Não é tempo ainda de julgar o que deu certo e o que deu errado. O novo Ensino Médio é um processo em construção, que vem mobilizando milhares de educadores, em todo o país. Todos estudam seriamente, leem as minúcias de uma legislação complexa, para tentar transformar essa etapa em algo melhor. Os próximos anos serão cruciais para vermos o que avançou, mas é preciso tentar fazer da escola uma experiência de co-construção.
Que sonho seria se nossos alunos deixassem de ser turistas do aprendizado para se tornarem peregrinos em busca de sentido no conhecimento. Que maravilha seria ver jovens abraçando projetos, ideias, construindo caminhos concretos, usando cabeça, mãos, pés, coração para aprender de corpo inteiro.
Sim, é evidente que há coisas a discutir e rever, mas hoje estamos falando de princípios. E, na lógica dos novos itinerários, há uma bússola central que não pode ser ignorada: a escolha. Só faz sentido haver itinerários se minimamente derem ao aluno o poder de escolher a viagem em que desejam embarcar, de corpo e alma, feito um peregrino. Para que o novo Ensino Médio seja de fato um passo à frente, para que os itinerários não sejam fake news, esse princípio deve ser preservado pelos educadores – nos projetos, nas eletivas, nos clubes do conhecimento, oficinas, trilhas nas mais diferentes formas que agora podem compor esse percurso.
Nossos jovens têm esse direito. Devemos lhes ensinar que a vida dos turistas é vazia, quando não vai além disso. O tempo passa, as coisas se vão. A bela vista a partir da janelinha em movimento, os mistérios dos prédios centenários, o bom vinho e sua ressaca, tudo isso vem e vai, sem deixar marcas. Mas, aquilo que vivemos de verdade, como lição de existência, os sentimentos à flor da pele, os desafios difíceis, mas reais, o estupor diante do conhecimento, presentes da viagem peregrina, são o caminho. Estes ficam, como luzes para orientar a jornada interna de cada um, nas infinitas possibilidades éticas da vida.