De professor para professor

Movimentos para resgatar vínculos

Profª Drª Ana Fausta Borghetti e Profª Daniela de Oliveira Borella

18 ago 2025

15 min de leitura

Profª Drª Ana Fausta Borghetti

Profª Daniela de Oliveira Borella

Este será um relato de experiência proposta e conduzida pela professora Daniela de Oliveira Borela, as auxiliares de educação Adrielle Ana Graciola da Silveira de Borba e Andressa Lermen Valduga e a estagiária Andriele da Silva Rodrigues, do Maternal A, da Escola de Educação Infantil Imigrante – rede municipal de ensino, em Encantado/RS, sob a coordenação da Diretora Ana Paula Montagna.

A experiência aconteceu durante o ano de 2024, tendo como objetivo aproximar as famílias do processo escolar possibilitando a elas momentos de participação nas conquistas de seus filhos, sentindo-se pertencentes aos processos vividos por eles, voltando a assumir o protagonismo enquanto pais na condução de conquistas importantes, neste caso: o desfralde. A pergunta que norteou essa experiência foi: Quais novos comportamentos podemos gerar a partir deste convite as famílias? O que desejamos criar a partir disso? 

Afirma-se que a experiência proposta teve êxito em vários aspectos: objetivamente, das 19 crianças que fazem parte do grupo de 2 a 3 anos, 16 já estavam desfraldadas em outubro do mesmo ano. Subjetivamente, podemos dizer que a vivência resgatou e restaurou laços invisíveis entre pais e filhos, devolvendo as famílias o seu protagonismo e responsabilidade em acompanhar, orientar, disparar processos de conquista tendo as professoras como verdadeiras guias, observando, orientando e encorajando a todos.

Em relação as crianças, o sentir-se olhada, acompanhada, respeitada em seu tempo subjetivo e celebrada pelas suas conquistas, tendo além das professoras, a guiança de seus pais, cria lastros emocionais que as auxiliarão a confiar em si, aceitarem-se e caminharem, com segurança, ao encontro de novos desafios.

Os teóricos que nos inspiram, são: Maria Montessori, Carla Rinaldi, Roberto Assagioli e Pierre Weil.

Conceitos: consciência de si, participação, família e escola

Introdução

No mundo contemporâneo, a escola vem assumindo responsabilidades que antes eram da família. A escola em tempo integral (não necessariamente de educação integral) tornou-se a referência para as crianças, na maioria dos casos, pois é neste espaço que a criança passa a maior parte do seu tempo e, por isso, vive suas conquistas. Estas geralmente acontecem, sem a participação dos pais, tendo as professoras como as pessoas que as acompanham, vivem e celebram momentos importantes.

Professores são na atualidade, as pessoas que, geralmente, incentivam e acompanham conquistas importantes do desenvolvimento infantil, como: os primeiros passos, as primeiras palavras, o desfralde, a transição da mamadeira para as primeiras garfadas entre tantas outras, pois a organização da sociedade contemporânea, muitas vezes, não oportuniza aos pais viverem e celebrarem as vitórias de seus filhos, deixando assim, de serem os protagonistas da educação de seus pequenos.

Percebendo o quanto esse vácuo deixa muitas crianças sem ou com pouca referência familiar, com pais distantes e professores sobrecarregados, também pensando sobre afetos, responsabilidades e limites entre as instituições família e escola, a  professora Daniela, após a sua vivência enquanto mãe, pensou em estratégias, junto a seu grupo de trabalho, para convidar estes pais a participarem das conquistas das crianças, viverem essas emoções com seus filhos, podendo inclusive, sentirem-se pais presentes, responsáveis, impulsionando e vivendo junto das crianças momentos que são fundamentais para a sua vida, principalmente subjetiva.

Além disso, esta proposta convida as famílias a ultrapassarem o senso comum, de que ‘escola de educação infantil, é o espaço onde deixo meu filho(a) porque preciso trabalhar’ e, perceberem que esta fase é a mais importante para o desenvolvimento – em todos os âmbitos – de seus filhos e que é fundamental que entendam e vivam de forma presente estes processos junto da escola e de seus filhos.

Sabemos, com a ajuda da psicologia, que a primeira infância é uma fase de grande desenvolvimento. Segundo Montessori (1949, p. 19), “é difícil determinar quando o ser humano começa a ser um homem”, mas sabemos que todos começamos pela infância. 

Como tudo começou?

“Durante toda a minha vida tenho proclamado a necessidade da liberdade de escolha, da independência de pensamento e da dignidade humana, todavia, entendo que a verdadeira liberdade é aquela interior, que não pode ser ensinada, não pode nem mesmo ser conquistada, pode somente ser construída dentro de si, como parte da personalidade e, se isto acontece, não poderá jamais ser perdida”  Maria Montessori

Tudo começou impulsionado por dois fatos que geraram na professora Daniela, momentos de inquietação, observação e reflexão. Foram eles: tornar-se mãe e, o desejo de que seu filho não conquistasse somente etapas para se tornar um adulto, mas conquistasse a si em cada etapa, vivendo-a de forma tranquila, percebendo e aprendendo através dos movimentos do seu próprio corpo e, o outro fato foi vivenciar, como professora, momentos de grande ansiedade e cobrança, quando do desfralde de uma turma inteira, que geralmente acontece de forma despersonalizada, não respeitando o tempo da criança e, a escola assumindo totalmente este acompanhamento,  e  de certa forma, tirando dos pais o prazer de introduzir seus filhos ao mundo, de celebrarem em família as conquistas, de sentirem-se capazes enquanto pais.

A partir destas duas vivências, a Profe Dani, em conversa com suas colegas e com a Diretora, entenderam que poderiam mudar os processos dentro de sala de aula, transformando o desfralde num momento de conquista para as crianças e para suas famílias, devolvendo aos pais a responsabilidade, mas também os empoderando e auxiliando para que acreditassem que seus filhos são capazes e, que eles – pais – também conseguem ser pais/guias.

Sabiam que precisariam mexer em alguns itens que estão “incrustrados” na nossa sociedade, por exemplo: ao invés de utilizarem somente os conhecimentos sobre desenvolvimento infantil pautados no tempo cronológico – mesmo tendo como suporte uma tabela sobre o assunto – usaram da observação e da escuta de um tempo já esquecido por nós… o tempo subjetivo ou como Hieráclito chamava: o tempo Ayón – tempo de presença.

Na natureza, as colheitas não dependem apenas das sementes e da preparação do solo, mas também da estação em que se jogou a semente. (Montessori 2018, p. 100)

Como sabiamente dito por Hieráclito e Montessori temos um tempo que é nosso, é interno… tempo para amadurecer, para sentir-se pronto e, se formos forçados a fazer isso antes de sentirmo-nos prontos é possível que a experiência não seja exitosa e, isso mexe com a nossa auto-estima, auto-confiança, amor próprio, conhecimento de si que são conquistas que iniciam na primeira infância. Caso aconteça o contrário, deixamos esse tempo passar porque nós adultos estamos sentindo-nos inseguros ou porquê dá trabalho precisar acompanhar a criança neste período, ou… é possível que a criança entenda que com a nossa falta de movimentos, insegurança ou preguiça ela não precise escutar seus estímulos internos e torne-se dependente do adulto que está ao seu lado. Talvez ela entenda que só pode movimentar-se quando o adulto der a ordem não aprendendo a se escutar.

Pierre Weil (2019, p. 90), educador e psicólogo francês, nos fala o quanto:

…o bom professor necessita, antes de tudo, compreender cada aluno, isto é, procurar as razões reais e não imaginárias da conduta de cada um. Neste sentido, a educação é uma ciência…

Weil (2019) também nos lembra o quanto a impaciência é nociva no campo educacional e, isso nos remete diretamente a importância da observação e da escuta para que entendamos os processos de desenvolvimento de cada criança e percebamos quando ela está pronta para a “conquista”. Isso está diretamente ligado a um tempo interno, subjetivo, mas também a respeito. 

Respeito em relação ao tempo do outro e, a como – nós adultos – lidamos com este tempo subjetivo.

Carla Rinaldi (2020, p. 124/125) nos fala sobre a importância da escuta, como tempo:

Escuta como tempo, tempo de ouvir, um tempo situado fora do tempo cronológico – um tempo cheio de silêncios, de longas pausas, um tempo interior… Por trás do ato de escuta existe normalmente uma curiosidade, um desejo, uma dúvida, um interesse; há sempre alguma emoção. Escuta é emoção… […] Escutar como verbo ativo que envolve interpretação… 

E, foi isso que a professora, auxiliares e estagiária do Maternal A, lideradas pela profe Dani fizeram: permitiram que cada criança percebesse a si e desse sinais que estava pronta para o desfralde e, elas – professoras – permaneceram neste tempo suspenso conversando internamente com suas crianças e confiando na capacidade de cada uma.

Como o processo se deu?

Um detalhe importante e que novamente nos falará sobre o tempo, é que a profe Dani está com esta turma desde o Berçário B. Pensamos que isso possa ter auxiliado no processo de observação e também de vínculo com as famílias e com as próprias crianças e, nos deixa um ponto de interrogação sobre a real necessidade de estarmos trocando os professores a cada ano. Mas, não nos estenderemos sobre este ponto, apenas o trouxemos para que façamos as observações necessárias e tomemos as melhores decisões a cada início de ano sobre o quadro de professores.

No primeiro encontro com as famílias, as professoras trouxeram os desafios que estão postos para as crianças nesta faixa etária, bem como os desafios para os adultos que as acompanham. Foi neste momento que esta caminhada deu início: as professoras convidaram as famílias a iniciarem o processo de desfralde dos seus filhos a partir do momento que as professoras, após a observação de sinais que apontassem dizendo que a criança está pronta para o desfralde, os chamassem. E, assim aconteceu!

Por todo o período as professoras foram orientando e empoderando os pais, falando sobre o quanto eles participarem deste processo é importante para a criança – afinal, para os pequenos ter os pais orientando e ajudando a vencer esta etapa (a cada etapa) tem um significado muito profundo -, bem como para eles – pais -, devolvendo um pouco o gostinho de sentirem-se presentes e participantes das conquistas de seus filhos e, talvez o mais importante: aprenderem a confiar que seus filhos são capazes! Assim, iniciou o ano…

Importante ressaltar que o desfralde foi feito de forma personalizada, ou seja, quando observado que a criança está dando sinais de prontidão, a atenção e os cuidados serão para ela. O que permite que cada criança se sinta vista neste momento tão importante, pois até então, a fralda era como se fosse uma parte do seu corpo e, perceber isso e respeitar esse momento é muito importante. Também é importante dizer que, durante o inverno, nenhuma criança foi convidada a fazer este exercício ou foi exposta a situações para que o desfralde acontecesse, respeitando a temperatura que poderia se tornar um impeditivo.

Permitir que as crianças sintam os movimentos do seu corpo, sintam o xixi e o cocô, sintam este incômodo, é fundamental para que elas tenham vontade de se tornarem autônomos e iniciarem o desfralde. Claro que paralelo a isso, existe um processo de amadurecimento físico, dos esfíncteres. Então, existe um amadurecimento do corpo, mas também um impulso psíquico, uma vontade de conquistar esta independência e, isto não está somente atrelado ao amadurecimento cronológico.

De acordo com Assagioli (1993, p. 49)

… muitas realidades e funções importantes foram negligenciadas ou ignoradas, como a intuição, a criatividade, a vontade e o próprio núcleo da psique humana – o Eu.

Ou seja, estamos há algum tempo ignorando ou negligenciando o que nos torna singulares, tratando a todos como iguais, não respeitando as diferenças e peculiaridades no desenvolvimento de cada um – físico, mental, espiritual, emocional,… abafando ou não permitindo que o EU de cada um se expresse.

A partir da sensibilidade das professoras, é feito o convite para a família, para que esta venha até a escola, dando início ao processo sempre na sexta-feira posterior e, a criança tenha no final de semana, o acompanhamento dos pais, permitindo que estes vivam esta conquista com seus filhos, em muitos casos, resgatando ou iniciando o processo de confiança que seus filhos são capazes e de aprofundamento de vínculos. De certa forma é dado a oportunidade para que os pais assumam suas responsabilidades. Neste mesmo encontro são feitos os combinados quanto as roupas que serão necessárias, aos tempos de sono – com e sem fralda e, assim por diante.

A comunicação é feita via bilhetes e com encontros, geralmente para tirar dúvidas de como iniciar ou continuar o processo – pois, não se orienta a voltar atrás, desistir. Estarmos apoiando as crianças durante estas travessias é fundamental para que elas sintam-se capazes de enfrentar desafios sobre si mesmas e conquistarem novas etapas na sua evolução.

Em situações de maior carência, a própria escola providenciou calcinhas e cuecas.

Além da observação e escuta, do preparo das famílias, as professoras também contam histórias sobre a retirada das fraldas, sobre o uso do pinico e encorajam as crianças a vestirem-se sozinhas – todos, exercícios de autonomia.

Após o retorno para a escola na segunda-feira, já desfraldadas, as professoras seguem com esse processo celebrando a conquista e encorajando os demais. A fralda será colocada somente no momento do soninho, que dura em torno de 1h e 30 min e, pela observação das professoras, as crianças precisarão da fralda neste momento, somente pelos próximos cinco dias.

A comunicação com a família neste período continua…

Até o momento – novembro de 2024, das crianças desfraldadas, nenhuma regrediu. 

Considerações Finais:

O mundo contemporâneo solicita que as famílias se dediquem muito para o mundo do trabalho, que muitas vezes, requer estudos e aperfeiçoamento, deixando pouco tempo para os adultos dedicarem-se ao autocuidado e ao acompanhamento do desenvolvimento de seus filhos. Existe um número, ainda pequeno, de famílias que conseguem se organizar para que este acompanhamento aconteça, por outro lado, existe um número cada vez maior de jovens que vem optando por não ter filhos, por sentirem-se “sem tempo”, “sem rede de apoio” para conseguirem educar um filho da forma que acreditam. 

Pais e mães contemporâneos, na sua grande maioria, confiam muito pouco em si, enquanto pais, e também não confiam que seus filhos conquistarão as etapas necessárias para um desenvolvimento saudável. Desta forma, é bastante tranquilo para eles terceirizar movimentos que seriam de responsabilidade afetiva da família, como: o desfralde.

O movimento sugerido pelas professoras da EMEI Imigrante e aceito pelos pais, de certa forma, devolve as famílias o sentimento de responsabilidade pelos passos do(a) seu/sua filho(a); o sentir-se capaz de educar uma criança; mas talvez, o resultado mais importante é o sentimento da criança ao perceber que seus genitores estão preocupados e participantes das suas conquistas, mostrando as crianças que elas têm pais “presentes” em momentos importantes de suas vidas. 

As professoras mostraram uma grande sensibilidade, paciência e respeito ao tempo subjetivo, ao corpo de cada criança observando, escutando, acompanhando, encorajando (inclusive os pais que não acreditavam que conseguiriam) como verdadeiras guias na construção de uma psiqué mais saudável, menos traumática.

Este movimento nos mostra que os pais querem entender mais sobre o desenvolvimento de seus filhos, bem como participar das conquistas deles – que também são suas. Também que, é possível envolver as famílias em movimentos que vão muito além de eventos festivos, convocando-os a participarem da educação de seus filhos.

Movimentos como esse, empoderam as famílias para que sintam-se capazes de auxiliar seus filhos, demonstrando um maior interesse nas conquistas e, por isso, acompanhando-os e assumindo o protagonismo de pais, para a partir deste novo sentimento, criarem ambientes de convivência mais harmoniosos, com crianças menos ansiosas e inseguras.

Referenciais Bibliográficos

ASSAGIOLI, Roberto. Psicossíntese: as bases da psicologia moderna e transpessoal. São Paulo : Cultrix, 2013.

MONTESSORI, Maria. A formação do homem. Campinas : CEDET. 2018.

RINALDI. Carla. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. Paz e Terra : Rio de Janeiro/São Paulo. 2020.

WEIL, Pierre. A criança, o lar e a escola. Editora Vozes : Petrópolis/RJ. 2019.

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