Por Gabriela Romeu
Era uma vez um menino inglês do século 19 que vivia sempre às voltas com seus besouros. Quando achava um bicho novo desses, tudo anotava sobre aquela espécie. Coisas como “preto intenso, capturado embaixo de pedras, em um local pantanoso”. E não só os besouros faziam parte das coleções desse menino. Ele acumulava conchas, pássaros, mariposas, orquídeas e até minhocas. O mundo natural o fascinava. E mais: criava um universo só seu, particular, a partir daqueles cosmos de asas.
Talvez você já suspeite quem seja esse menino curioso. Sim, o cientista Charles Darwin (1809-1882). Mas os impulsos de reunir e colecionar, investigar e anotar, listar e categorizar não são exercícios somente dos cientistas, apesar de serem evidentemente uma prática característica desse grupo. Qual criança não coleciona miudezas – figurinhas, brinquedos, pedras, papéis – e cientista o mundo com olhos de luneta? Darwin, antes mesmo de empreender uma viagem científica a terras distantes, desbravou e inventariou (reuniu, descreveu, classificou) os bichos do próprio quintal. O menino Darwin, como nos indica sua biografia de infância, já era um incansável inventariante.
E o que é inventariar? Antes mesmo do verbo, o substantivo, o termo “inventário”, que é uma descrição e enumeração minuciosa de coisas – objetos, obras, palavras. E de seres, sensações, saberes. “Inventariar” é reunir, descrever e classificar um dado universo. Mas é uma palavra que ainda guarda outra. O vocábulo abarca também a ideia de invento, ou invenção. Assim, as “coisas” listadas são também imaginadas, criadas e engendradas ao fazer poético. Todas e todos nós – educadores, crianças, artistas e poetas – somos inventariantes natos, desde o tempo de antes. Aprendemos a inventariar na infância, ou seja, a agrupar, dividir, dispor, distribuir, quando lançamos mão desses verbos ao brincar/investigar/organizar com pedrinhas de todos os tipos no quintal ou enfileirar carrinhos dos mais variados no tapete da sala.
Um inventariante é um investigador que olha com vagar e demora. Mergulha na experiência, aquela que não se repete. Ou, como diz o poeta Eucanaã Ferraz, é aquele que “coisa nas coisas”. Os poetas (e as crianças) sabem, sim, “coisar”, o tal delírio do verbo de Manoel de Barros, nosso poeta crianceiro. “Coisar” é o verbo-coisa de todo bom inventariante.
Gosto de coisar nas coisas.
Desde garoto coisava comigo
essa coisa curiosa:
as coisas fazem cócegas nos nossos olhos!
Os olhos sabem de tudo.
E ficam assim, refletindo, mudos,
matutando, coisando,
cuidando do mundo.
(poema Coisando, do livro Cada coisa)
Os artistas, e entre eles os poetas, são exímios inventariantes, como nos ensina Eucanaã, criador de um inventário poético de objetos, muitos deles marcantes em seu tempo de menino – lápis, clipe, caderno, guarda-chuva, anzol, prego. (Qual seria o seu inventário de coisas dos tempos de criança? Ou qual seria o inventário de coisas das crianças de agora?) Ele versa um jeito de inventariar as coisas de um dado universo pelos olhos da poesia, essa arte da palavra que nos oferece outras lentes de ver, de se aproximar das coisas e investigar o que têm dentro, para além da casca e de outras superfícies. São muitos os artistas inventariantes a nos abrir atalhos para entender a impossibilidade de classificar o et cetera – daí a urgência poética.
Já a palavra “invenção” nos dá outras pistas para pensar a ação inventariante, o ato de inventariar. O termo “invenção” tem origem no latim invenire, uma busca por relíquias ou restos arqueológicos, ou seja, pistas do passado. Inventar é uma operação que tem bem menos relação com uma iluminação súbita do que um trabalho árduo e contínuo com sobras, vestígios, refugos, resíduos. É menos insight, e muito mais ensaio. Assim como a imaginação, a memória entra nesse jogo de montar, um quebra-cabeça em que vamos encontrando e (des)encaixando as peças no percurso investigativo. Como num exercício de colagem, feito com os elementos do que somos, vivemos e sentimos, investigamos, indagamos e aprendemos, imaginamos, afirmamos e lembramos.
Inventariar é um convite a contar histórias a partir da criação de formas inventivas de organizar universos – os saberes e viveres das crianças de um lugar, as receitas de nossa família, as experiências de um ano numa escola, os portfólios de criações da turma, da classe, as aprendizagens de um semestre –, a partir de fragmentos já existentes, das experiências vividas, das colheitas do quintal, dos vestígios dos nossos álbuns, dos registros mais variados em busca de ângulos novos dos cantos do pátio escolar.
Inventariar é organizar as coisas, coisar, a partir de perguntas, nem sempre verbais. Questionamentos e indagações que saltam do corpo todo, escapam pelas mãos, escorrem pelas pernas até pés que querem saber de tudo, das peles do mundo. Para investigar de outros modos, é necessário abrir os poros, outros poros. Questões que invente, modos de conhecer a si, o outro, as coisas, o mundo. A escola, todo um mundo. Quais indagações lançamos no começo do ano para inventariar um percurso de descobertas?
Inventariar é listar com olhos de poeta (e de criança) o que não tem fim. Uma espécie de vertigem das listas. Inventariar os dias, as histórias, as coisas do quintal da escola. Inventariar as cores do chão, o que as crianças guardam nos bolsos, as pedras do caminho. Inventariar os bichos das nuvens na hora do recreio, todas as perguntas feitas fora de hora. Inventariar os grifos ou sublinhados dos livros, as leituras mais desconcertantes, aquelas que nos deslocam, tudo o que devemos (é urgente) desaprender, os silêncios e os olhares cheios de dizeres das crianças. E tudo o mais (et cetera) que precisamos (re)inventar. Inventariar.
Gabriela Romeu é escritora, documentarista e inventariante das infâncias em muitos quintais-Brasis. Idealizou o Mapa do Brincar e é diretora do projeto Infâncias (www.projetoinfancias.com.br). É autora de livros como Terra de cabinha – Pequeno inventário da vida de meninos e meninas do sertão, Lá no meu quintal – O brincar de meninas e meninos de norte a sul do Brasil, Menininho, Manual da criança Huni Kui, Tutu-Moringa – História que tataravó contou e Irmãs da chuva.