Um dilema que as crianças são obrigadas a enfrentar
Um sinal sonoro ecoa por todo o espaço escolar anunciando a chegada de um pequeno (cada vez menor) intervalo entre as atividades. O que há tempos atrás causava euforia e alegria, hoje está se transformando num momento onde a criança precisa decidir. Comer ou brincar?
É muito possível que você esteja lendo este artigo com uma boa xícara de café ou chá, uma bolachinha ou até mesmo diante de um prato de jantar. Não há nenhum problema nisto, afinal de contas, você tem o poder de escolher. As crianças não.
Aqueles 15 ou 20 minutos que estabelecemos como “recreio” podem ser muito mais importantes do que imaginamos. É preciso refletir sobre a força do aprendizado que está contida no brincar.
Legitimidade e autenticidade
Existem inúmeras definições em artigos científicos e acadêmicos sobre as complexidades da infância, suas características, suas especificidades e até mesmo sobre suas cronologias. Mas há um item comum a todas elas: a importância do brincar.
Para as crianças, o ato de brincar é um exercício de originalidade de sua infância, algo muito próximo de seu instinto natural. Pouco ou nenhum estímulo material externo será necessário, exceto entregar a elas liberdade.
Manifestação autêntica, o brincar é o exercício ancestral de busca pelo aprendizado de forma natural e espontânea, onde a infância é capaz de unir, num único movimento, seus sentidos e seus mais profundos sentimentos.
Enquanto entrega seu corpo às interações sensoriais, as construções sociais também vão sendo construídas. Esta genuína ação provoca a mais completa e complexa gama de aprendizagens a que uma criança pode ser submetida. Acredite! Não há método mais eficaz e global de promover o conhecimento.
O fantasma do relógio
O mundo adulto é capaz de fragmentar nossas vidas em pequenos pedaços de tempo, onde precisamos encaixar todas as tarefas do dia pulverizando uma mistura de trabalho, transporte, alimentação, lazer, descanso, ócio e prazer.
Acordamos sempre no mesmo horário, mesmo quando nossos corpos pedem mais descanso; entramos nos ônibus, mesmo quando não há mais espaço; comemos correndo ou abandonamos a refeição, mesmo que ainda haja fome; encerramos nossas conversas, mesmo que ainda haja assunto.
Ou seja, as nossas saciedades estão muito mais ligadas às nossas disponibilidades de tempo do que efetivamente pelas nossas necessidades/direitos. Escolhemos viver a partir da pulsação de nossos relógios, não pela de nossos corações.
No meio deste turbilhão de escolhas e cronômetros estão nossos filhos, nossos educandos, nossas crianças. Parece bastante difícil tirá-las de suas camas pela manhã enquanto ainda dormem, para trocar suas roupas e levá-las para a escola. Também sentimos muito quando as fazemos comer algo quando seus corpos não sentem necessidade.
Não é sequer respeitoso com suas naturezas quando as encaixamos em nossas vidas e planejamos seus horários a partir de nossas prioridades. Afinal, o mundo é dinâmico e estamos envoltos pelas necessidades que nós mesmos inventamos.
Eles precisam aprender
Precisamos realmente falar sobre a aprendizagem. O mundo que estamos construindo e vamos entregar às nossas crianças vai exigir delas muito conhecimento para enfrentar os desafios que estão sendo preparados para eles.
Provas, exames, concursos e vestibulares vão exigir que eles dominem, o melhor possível, o idioma, a matemática, as ciências, a história, a geografia, a tecnologia e as artes. É preciso conduzi-los da melhor forma possível para que alcancem sucesso profissional e realização pessoal.
Entretanto, somos nós quem precisamos aprender, e rápido, que é necessário limpar os processos de aprendizagem das frustrações que eles causam quando os interesses, os ritmos e os tempos das infâncias são rompidos ou moldados pelos “nossos” ritmos, tempos e interesses.
Mas o que parece mais grave é uma outra realidade fática, que ousamos desprezar. Há muito aprendizado envolvido no brincar e não sabemos fazer uso disto. Porque insistimos em tratar este momento tão rico de entrega das crianças como algo secundário?
Nós precisamos aprender
Se não nos dermos conta, de imediato, que a hora do recreio não interrompe o aprendizado, mas ao contrário, aproxima a criança de seu estado natural de estar no mundo, não estamos prontos para ensinar/acompanhar nada.
Quando elas estão neste “estado de brincar” existe uma entrega completa ao mundo ao seu redor e aumenta seu interesse em conhecer e explorar todo o entorno. Uma abertura natural e espontânea de seus canais de conhecimento.
Onde nós, educadores, estamos neste momento tão importante de seus recreios? Quem sabe respondendo algum e-mail ou mensagem, quem sabe comendo um lanche ou colocando as pernas por alguns minutos para cima, para desincharem um pouco.
Quem sabe estamos apenas cuidando para que comam suas merendas antes que um novo sinal sonoro soe anunciando o término do horário. Sinal do tempo, final dos tempos.
Para que eles “aprendam brincando” precisamos ensinar brincando. Temos muito a aprender com eles antes de ensinar a eles. A infância tem seus tempos próprios e nossos métodos outros, e pode ser que não saibamos nos utilizar deste fator em nosso favor.
Precisamos refletir sobre isso. Há uma expressão na Língua Portuguesa para nos chamar à seriedade em nossas tarefas: “Não brinque em serviço”! Portanto sugiro a todos nós:
“Não brinquem com seus recreios”.