Foi quando tudo começou. É difícil imaginar a força que os habitantes de uma cidade têm de reunir para reiniciar a vida após uma grande guerra. Reunir é o termo mais adequado, pois a força deve ser coletiva para construir a esperança da continuidade, diante dos escombros de uma guerra.

Na Itália, mais especificamente em uma aldeia campestre chamada Villa Cella, na primavera de 1945, os cidadãos – no verdadeiro sentido da palavra – decidiram criar uma escola para seus filhos. Uma escola cuja construção seria feita com o dinheiro arrecadado com a venda de carros bélicos e cavalos abandonados pelos alemães em fuga.

A alguns quilômetros desse local, em Reggio Emilia, cidade da região central da Itália, um jovem professor ouviu falar desse projeto e, com sua bicicleta, dirigiu-se a Villa Cella para oferecer seus serviços. Era Loris Malaguzzi (1920-1994).

Entusiasmado e contagiado pelo empenho dos cidadãos de Villa Cella e redondezas, o então professor e futuro psicólogo assumiu a escola em conjunto com a comunidade e levou o trabalho adiante. A ideia ganhou a adesão de muitas comunidades próximas e outras escolas foram fundadas na região. Para geri-las, encontraram logo a forma mais adequada, a autogestão, ideia em sintonia com o perfil cooperativo dos cidadãos. No entanto, devido às difíceis circunstâncias do imediato pós-guerra, período em que ainda se contabilizavam as perdas de parentes e amigos em meio ao empobrecimento da região, a autogestão ficou comprometida. Uma alternativa era tornar a escola municipal. Foi o que aconteceu. 

Alguns anos depois, em 1963, foi inaugurada a primeira escola municipal de educação infantil de Reggio Emilia. Foi feita de madeira e, inicialmente, abrigava poucas crianças. Depois de três anos, foi destruída pelo fogo. Naquele momento, mais uma vez foi preciso reunir forças para recomeçar. A nova escola, até hoje em atividade, foi construída em alvenaria e batizada de Scuola Robinson, nome que homenageia o herói romanesco Robinson Crusoé, personagem de Daniel Defoe (1660-1731). Crusoé simboliza a luta do homem só contra a natureza, a reconstituição dos primeiros rudimentos da civilização humana, testemunhada apenas por uma consciência e dependente de uma energia própria. 

Com essa escola inicia-se o que atualmente é a rede de escolas da infância e creches municipais para crianças de 0 a 3 anos (nidos) da cidade de Reggio Emilia. Malaguzzi foi o idealizador do projeto educativo e de uma pedagogia própria, que contempla sua experiência política, social, cultural, artística e sua formação como educador e psicólogo.

Dela, resultou a Pedagogia da Escuta e a Teoria das Cem Linguagens das Crianças, fundantes do projeto.

Sintonia local

O educador italiano bebeu de outras fontes teóricas e recebeu apoio local para fundar uma escola com esses valores. Porém, sua clareza de propósitos e a sintonia do projeto com o perfil de Reggio Emilia – cidade compromissada com o coletivo, acolhedora das diferenças e posicionada politicamente à esquerda – foram elementos fundamentais para a força e valor da abordagem reggiana.

Para que se conheçam a Pedagogia da Escuta e a Teoria das Cem Linguagens é preciso compreender a concepção de criança da qual partiu Malaguzzi para pensar a escola.

A criança competente e portadora de direitos

Competente porque é capaz de pensar o mundo em que vive, de elaborar teorias provisórias e de estabelecer relação e diálogo com o seu tempo e espaço. Não é a criança sugerida em teorias do desenvolvimento que a consideram como um “vir a ser”, ou seja, como alguém que ainda não está pronto para aprender e relacionar-se com o contexto em que está inserido, que necessita mais de proteção e cuidados do que de construção de significados e conhecimentos. É uma concepção na qual a criança é sempre cidadã, e não uma futura cidadã. É uma criança rica, pois tem saberes, produz e não apenas consome cultura.

Tem ideias, saberes e linguagens as quais utiliza para se expressar. Usa os cinco sentidos como canais/ferramentas para a expressão dessas linguagens. Como se expressa por meio de “cem linguagens”, precisa da escuta ativa do adulto, para que este cumpra a função de um professor competente para compreender suas diversas formas de expressão. 

Portadora de direitos de ser reconhecida como sujeito social e civil, com suas características e necessidades físicas, morais e afetivas, ou seja, porta o direito ao acolhimento de sua subjetividade, considerando sua singularidade. De ser respeitada, independentemente de sua cultura, num espaço em que possa tornar-se construtora de novos direitos.

“Uma criança competente, ativa, crítica; uma criança, portanto, ‘incômoda’ à medida que produz mudanças, movimentos dinâmicos nos sistemas nos quais está inserida, sejam sociais, familiar ou escolares; produtora de cultura, de valor e de direitos, e competente para viver e conhecer”, como citam, Ceppi e Zini em Crianças, espaços, relação (Bambini, spazi, relazione, 2001).

Pedagogia da escuta

É a pedagogia que colhe e acolhe a criança competente e possibilita um professor competente. Que cria um contexto de escuta. 

Ativo 9 Escutar como um verbo ativo, à medida que o significado não está no que digo, mas no que tenho capacidade de escutar. A escuta que legitima o outro e dá forma ao seu pensamento.
Ativo 9 Escuta como um ato de respeito e de amor.
Ativo 9 Escutar com os olhos, com o tato, com todo o corpo.
Ativo 9 Escutar como disponibilidade ao outro, que me completa, de que eu preciso. Significa atribuir ao outro valor e relevância e colocar o centro da aprendizagem na criança, escutar as suas “cem linguagens”.
Ativo 9 Escutar no silêncio e no tempo para reflexão. Escuta é curiosidade, pesquisa, teoria.

O professor competente

É aquele que é atento, curioso, investigador. Que escuta a criança e possibilita muitos cenários de aprendizagem. Que aprende com a criança, com seus pares e com as famílias. Que aprende e sabe que o conhecimento é mutante, imprevisível e, portanto, nunca pára de estudar. Que reflete sobre as hipóteses das crianças sem antecipar-se com base em quadros de referências. Que respeita, acolhe e elabora as singularidades, dialoga com cada criança e com todas, construindo um grupo e fortalecendo as relações de compromisso entre todos. Que valoriza o coletivo como diversidade e trabalha o sentido de pertença. Que faz parte do grupo sem perder a dimensão de responsabilidade como adulto.

 

Teoria “As cem linguagens das crianças”

Malaguzzi pensou nas linguagens como formas de expressão das crianças. Em um trecho de seu poema sobre as cem linguagens, diz:

quote-left A criança é feita de cem…

A criança tem cem linguagens

(e depois cem cem cem)

mas roubam-lhe noventa e nove.

A escola e a cultura

lhe separam a cabeça do corpo…

Dizem-lhe enfim:

Que o cem não existe.

A criança diz:

Ao contrário o cem existe quote-left cópia

O Projeto Educativo dos nidos e escolas da infância de Reggio Emilia confundiu-se em parte com a Teoria das Cem Linguagens, sendo compreendido como totalmente voltado para a linguagem artística. É claro que a Itália é uma referência importante na arte, principalmente quando pensamos em Michelangelo Buonarotti (1475-1564) e Leonardo da Vinci (1542-1519). No entanto, o projeto vai além das linguagens, trabalhando também com valores.

O dicionário Houaiss tem como primeira definição de linguagem “qualquer meio sistemático de comunicar idéias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.”.

Nas escolas de Reggio Emilia, as linguagens são várias. Mesmo considerando a linguagem pictórica, observamos que a professora “lê” o trabalho da criança para além do resultado.

Reflete sobre o processo, sobre o movimento do traço, sobre a possível intenção da criança e sobre a evolução desse trabalho.

Dialoga com seus pares e constrói uma narrativa da criança à medida que documenta suas palavras, gestos e hipóteses. Portanto, observa-a para além da linguagem artística.

Eloisa Ponzio é Master em Coordenação Pedagógica pela Universidade de Modena e Reggio Emilia e em Direção e Gestão de Centro Educativo pela Universidade de Barcelona. Pedagoga PUC/ SP. Tem experiência profissional como professora, orientadora e coordenadora de escolas. Formadora de professores do projeto Museu da Língua Portuguesa e do Instituto Tomie Ohtake, é docente em cursos de Educação Continuada no Instituto Vera Cruz e no Centro de Estudos Prisma. É coordenadora da Escola Vera Cruz, consultora e assessora em Educação para ONG, escolas privadas e públicas.

Texto extraído do site da revista Educação/10 de setembro de 2011