Olhar o mundo a partir dos olhos das crianças, de suas descobertas, perspectivas e sentimentos: tarefa tão desafiadora para o adulto, quanto necessária ao propósito de educar uma criança. Escutar a criança, nesse sentido- coloca-se como um pilar nesse processo.
“Essa escuta da qual falamos não é um interrogatório, não é encher a criança de perguntas”, coloca Adriana Friedmann, pesquisadora, autora, consultora nas temáticas da infância, e realizadora do Mapa da Infância Brasileira, sua principal atividade dos últimos anos.
Afinal, que escuta é essa? Qual é a sua importância? Como ela pode se dar nas relações entre adultos e crianças?
Brincar junto também é um elo de comunicação com a criança.
A seguir, confira um apanhado das reflexões da especialista sobre essa e outras temáticas, como protagonismo, educação, brincadeira, tecnologia e educação emocional na infância:
Escutar a criança
“Afinal, quem escuta as crianças? Essa escuta da qual falamos não é um interrogatório, não é encher a criança de perguntas. Quando você faz uma pergunta para uma criança, ela é tão esperta que vai te responder aquilo que você quer ouvir, não necessariamente aquilo que corresponde à verdade dela.
Para mim, a ideia da escuta não é escutar apenas com os ouvidos, mas também você poder entender o que a criança está expressando e colocando no mundo através das suas atividades de criança, o brincar, as artes, o movimento, o corpo, a música, a escrita, a palavra. O tempo inteiro a criança está descobrindo o mundo e se expressando, se colocando.
“Mas o que está por trás disso tudo? Em primeiro lugar, dar espaço para que a criança respire, seja mais autônoma, e tenha tempo livre para ser criança”
Em segundo lugar, poder entender quem é essa criança e podermos entender, enquanto pais, educadores e gestores, podermos repensar o que estamos propondo para elas.
É nessas brechas que aparecem as mensagens, pérolas, a partir das quais você vai entender melhor o que essa criança tem interesse, dificuldade, medo, o que ela gosta, quais são os desejos e fantasias. Muitas coisas ela reproduz quando brinca, desenha e se movimenta. Ela reproduz como vê o mundo, coisas que vive em casa, medos e frustrações”.
A criança protagonista
“A criança é protagonista o tempo inteiro. O tempo todo ela esta se mostrando, se expressando. Não precisamos jogá-la para isso, porque ela já é.
Nós, adultos, não compreendemos isso e não escutamos o que ela está colocando. A gente tem que reconhecer isso e adentrar esse universo.
Há escolas interessantíssimas, que dão espaço para esse protagonismo, que colocam a criança nesse espaço de protagonista de verdade, ouvindo de verdade.
O protagonismo acontece o tempo inteiro. Está acontecendo no recreio, quando você dá uma atividade livre para criança, está acontecendo quando o professor vira as costas e as crianças já estão ali, com sinais e códigos entre elas”.
O adulto, a brincadeira e a criança
Há uma pressão tamanha na vida da criança que inconscientemente ela percebe. E não há espaço para respirar, e isso é ruim para seu desenvolvimento. Ela tem que ter autonomia, seu espaço de controle.
“Há uma ilusão de que podemos controlar um filho o tempo todo”
Há uma pressão, um direcionamento o tempo todo, e se acha ainda, apesar de tantos estudos, que o tempo livre de brincar, da criança fazer o que bem tem vontade, é perda de tempo. Na verdade, é um grande ganho para o desenvolvimento da criança, para a sua descoberta e compreensão do mundo.
“Hoje, temos um adulto muito mais vigiando do que propiciando situações de brincadeira livre”
Brincar junto também é um elo de comunicação com a criança. É interessante brincar junto em alguns momentos, mas não ficar querendo ensinar à criança como se faz”.
Até um ano de vida, a criança vai descobrir o mundo por meio dos sentidos.
O tempo da infância
“As crianças brincam de faz de conta: imitam ou ressignificam a vida real. Você pode propiciar o tempo, o espaço e objetos. Quando você deixa a criança, ela constrói uma narrativa na brincadeira. A gente, por conta do tempo, acaba interrompendo essas narrativas da brincadeira. Eu sempre falo para os professores que, de uma forma inconsciente, a gente acaba podando violentando processos que a gente não acompanha. A brincadeira acabou por que o relógio diz, mas o tempo das crianças é outro”
Emoção e sentimentos
“Acho que nossa atitude de controle, de querer ensinar o tempo todo, também tem a ver com as doenças que as crianças tem tido, físicas e psíquicas, como hiperatividade. A criança que tem muita energia, agressiva, que não para um minuto, muitas vezes é medicada.
“Por que será que essa criança está a mil por hora? Muitas vezes, ela está pedindo socorro. Está agressiva por que não sabe lidar com suas emoções”
Em vez de encaixotá-la e medicá-la, já colocar uma tarja dizendo que ela é assim ou assado’, crie situações em que ela possa colocar energia para fora. Não é preciso ser psicólogo para isso. É claro que muitas vezes as crianças precisam ser encaminhadas para um especialista, mas esse não é o primeiro recurso”.
Criança, publicidade e consumo
“É difícil falar não, mas por trás dessa fala e desse desejo [da criança, que pede coisas] há um ‘presta atenção em mim’. Se a criança fica chacoalhando o adulto e pedindo algo, é porque quer o adulto com ela. O brinquedo é muito mais uma desculpa. Mas, claro, também há uma influência subliminar da propaganda nesse gesto de pedir”.
Telas e desenvolvimento infantil
“Até um ano de vida, a criança vai descobrir o mundo através dos sentidos. É uma fase que precisamos oferecer espaços de experimentação: para a criança levar coisas à boca, cheirar, tocar, pisar, cair e levantar.
Estamos vendo os bebês sentados nos carrinhos sempre com uma tela na frente, e com pouco contato com a natureza. E isso é uma coisa nossa, de adultos, de sociedade. A criança fica hipnotizada pela tela, mas o corpo não se mexe, e cria uma grande ansiedade quando o adulto chega e diz que acabou.
Nos primeiros anos de vida essa exposição é pouco indicada porque a criança ainda não tem maturidade cognitiva. Com as telas, ela está numa concentração mental, e o corpo está parado. Sempre coloco assim: telas para os bebês, nem pensar”.
As singularidades de cada criança
“A gente acha que conhece as crianças, mas a verdade é que a gente não conhece. De repente, você está ali com 2 ou 3 filhos, criados na mesma família, e cada um é um mundo. Não só a criança já tem um repertório cultural, familiar, mas tem um repertório próprio. Cada criança tem um jeito único, uma essência única. Mas é também quando falamos de potência: cada criança tem uma potência única que a faz única.
Você vê muito as escolas e os educadores buscando modelos lá fora. Eu digo que os modelos podem ser inspiradores, mas temos a nossa cultura. Não podemos deixar de considerar quem é essa criança, sua família, a diversidade cultural do nosso país. Todos somos únicos, temos uma história ancestral que é única”.
Matéria realizada por Camila Hungria em 23/10/2017 para o site Lunetas