Uma mudança de paradigma: da infância tutelada à infância cidadã
A compreensão sobre a infância passou por transformações significativas ao longo do século XX, especialmente no campo dos direitos. A Declaração dos Direitos da Criança da ONU de 1959 ainda apresentava uma imagem da criança como sujeito frágil e tutelado, essencialmente dependente da proteção adulta. A criança era vista como “não plenamente desenvolvida”, alguém a quem se devia cuidar e formar.
Trinta anos depois, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 introduz uma mudança paradigmática ao reconhecer as crianças não apenas como destinatárias de proteção, mas também como sujeitos de direitos civis, sociais e políticos. Essa convenção afirma o direito das crianças à participação ativa, à liberdade de expressão, à escuta de suas opiniões e ao envolvimento em decisões que as afetam.
Essa transformação exige das instituições educativas (e da sociedade como um todo) uma revisão profunda das relações entre adultos e crianças, especialmente no que se refere à partilha de poder.
A contribuição de Bondioli: escuta qualificada e corresponsabilidade
É nesse contexto que a pesquisadora italiana Anna Bondioli propõe a noção de participação qualificada das crianças, destacando que ouvir as crianças não é suficiente. É preciso levar em consideração o que dizem, abrir espaços concretos de negociação e promover uma corresponsabilidade real na vida cotidiana da escola.
Para Bondioli, essa escuta qualificada requer:
- Ruptura com práticas adultocêntricas
- Reconhecimento da criança como sujeito potente de linguagem, cultura e pensamento
- Mediação sensível e ética dos adultos, que devem construir contextos em que a palavra da criança tem valor, principalmente quando falamos da vida dela e do grupo da qual faz parte
Ela destaca ainda que a participação é um processo em construção, não dado espontaneamente, e que exige comprometimento institucional, formação dos adultos e reestruturação das práticas pedagógicas.
A partir da ideia da autora podemos levantar algumas questões que envolvem o cotidiano da escola:
Como equilibrar a proteção necessária com a autonomia desejada?
Como enfrentar os desafios de compartilhar poder e construir decisões em parceria com as crianças?
O modelo de participação de Shier: uma ferramenta para reflexão e ação
Com uma perspectiva complementar, o educador Harry Shier (2001) propõe um modelo em cinco níveis progressivos de participação infantil:
- As crianças são ouvidas
- Suas opiniões são levadas em consideração
- Elas participam de processos de decisão
- Compartilham poder e responsabilidade
- Dirigem os processos de decisão
Cada nível é acompanhado por três estágios: abertura, oportunidade e obrigação, permitindo que educadores analisem criticamente seu grau de engajamento com a participação infantil.
Ao combinar esse modelo com as ideias de Bondioli, percebemos que o nível de participação está diretamente ligado à imagem de infância que os adultos sustentam. Uma imagem de criança ativa, cidadã e competente favorece práticas de escuta, negociação e construção conjunta do cotidiano educativo.
Desafios contemporâneos: entre proteção e participação
Mesmo diante dos avanços legais e teóricos, muitos desafios persistem para que a participação das crianças se realize plenamente:
- Ambivalência entre proteger e participação: muitas vezes, em nome da proteção, os adultos limitam a participação das crianças, interpretando que não estão preparadas ou que “não devem se preocupar com isso”.
- Assimetria de poder: a relação adulto-criança é, inevitavelmente, marcada por diferenças de poder. A participação exige que o adulto compartilhe esse poder sem se omitir de seu papel formador e cuidador.
- Cultura institucional pouco aberta à escuta: horários rígidos, currículos fechados e foco em resultados muitas vezes inviabilizam espaços reais de participação.
- Formação dos adultos: como aponta Bondioli, a escuta qualificada e a corresponsabilidade não são intuitivas — demandam formação específica, reflexão ética e disponibilidade afetiva.
Conclusão
A partir das contribuições de Bondioli e Shier, podemos afirmar que participação infantil não é um favor concedido pelas instituições, mas um direito que exige transformações concretas nas práticas pedagógicas, nas estruturas institucionais e nas posturas dos adultos. Escutar as crianças, considerar suas opiniões e envolvê-las nas decisões do cotidiano são práticas que exigem tempo, ética e coragem.
Só assim será possível caminhar para uma educação verdadeiramente democrática, em que a infância não seja apenas protegida, mas também respeitada, escutada e incluída como protagonista da sua própria experiência.