De professor para professor

A participação das crianças: o desafio do equilíbrio entre proteção e participação

Carolina Kerr

09 jun 2025

5 min de leitura

Uma mudança de paradigma: da infância tutelada à infância cidadã

A compreensão sobre a infância passou por transformações significativas ao longo do século XX, especialmente no campo dos direitos. A Declaração dos Direitos da Criança da ONU de 1959 ainda apresentava uma imagem da criança como sujeito frágil e tutelado, essencialmente dependente da proteção adulta. A criança era vista como “não plenamente desenvolvida”, alguém a quem se devia cuidar e formar.

Trinta anos depois, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 introduz uma mudança paradigmática ao reconhecer as crianças não apenas como destinatárias de proteção, mas também como sujeitos de direitos civis, sociais e políticos. Essa convenção afirma o direito das crianças à participação ativa, à liberdade de expressão, à escuta de suas opiniões e ao envolvimento em decisões que as afetam.

Essa transformação exige das instituições educativas (e da sociedade como um todo) uma revisão profunda das relações entre adultos e crianças, especialmente no que se refere à partilha de poder.

A contribuição de Bondioli: escuta qualificada e corresponsabilidade

É nesse contexto que a pesquisadora italiana Anna Bondioli propõe a noção de participação qualificada das crianças, destacando que ouvir as crianças não é suficiente. É preciso levar em consideração o que dizem, abrir espaços concretos de negociação e promover uma corresponsabilidade real na vida cotidiana da escola.

Para Bondioli, essa escuta qualificada requer:

  • Ruptura com práticas adultocêntricas
  • Reconhecimento da criança como sujeito potente de linguagem, cultura e pensamento
  • Mediação sensível e ética dos adultos, que devem construir contextos em que a palavra da criança tem valor, principalmente quando falamos da vida dela e do grupo da qual faz parte

Ela destaca ainda que a participação é um processo em construção, não dado espontaneamente, e que exige comprometimento institucional, formação dos adultos e reestruturação das práticas pedagógicas.

A partir da ideia da autora podemos levantar algumas questões que envolvem o cotidiano da escola:

Como equilibrar a proteção necessária com a autonomia desejada?

Como enfrentar os desafios de compartilhar poder e construir decisões em parceria com as crianças?

O modelo de participação de Shier: uma ferramenta para reflexão e ação

Com uma perspectiva complementar, o educador Harry Shier (2001) propõe um modelo em cinco níveis progressivos de participação infantil:

  1. As crianças são ouvidas
  2. Suas opiniões são levadas em consideração
  3. Elas participam de processos de decisão
  4. Compartilham poder e responsabilidade
  5. Dirigem os processos de decisão

Cada nível é acompanhado por três estágios: abertura, oportunidade e obrigação, permitindo que educadores analisem criticamente seu grau de engajamento com a participação infantil.

Ao combinar esse modelo com as ideias de Bondioli, percebemos que o nível de participação está diretamente ligado à imagem de infância que os adultos sustentam. Uma imagem de criança ativa, cidadã e competente favorece práticas de escuta, negociação e construção conjunta do cotidiano educativo.

Desafios contemporâneos: entre proteção e participação

Mesmo diante dos avanços legais e teóricos, muitos desafios persistem para que a participação das crianças se realize plenamente:

  • Ambivalência entre proteger e participação: muitas vezes, em nome da proteção, os adultos limitam a participação das crianças, interpretando que não estão preparadas ou que “não devem se preocupar com isso”.
  • Assimetria de poder: a relação adulto-criança é, inevitavelmente, marcada por diferenças de poder. A participação exige que o adulto compartilhe esse poder sem se omitir de seu papel formador e cuidador.
  • Cultura institucional pouco aberta à escuta: horários rígidos, currículos fechados e foco em resultados muitas vezes inviabilizam espaços reais de participação.
  • Formação dos adultos: como aponta Bondioli, a escuta qualificada e a corresponsabilidade não são intuitivas — demandam formação específica, reflexão ética e disponibilidade afetiva.

Conclusão

A partir das contribuições de Bondioli e Shier, podemos afirmar que participação infantil não é um favor concedido pelas instituições, mas um direito que exige transformações concretas nas práticas pedagógicas, nas estruturas institucionais e nas posturas dos adultos. Escutar as crianças, considerar suas opiniões e envolvê-las nas decisões do cotidiano são práticas que exigem tempo, ética e coragem.

Só assim será possível caminhar para uma educação verdadeiramente democrática, em que a infância não seja apenas protegida, mas também respeitada, escutada e incluída como protagonista da sua própria experiência.

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